João Cabral: a escrita meio-de-campo

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Texto de Danilo Malabrito

Quem lê a poesia de João Cabral de Melo Neto logo pode observar que o poeta é um mediador do olhar de trás das vistas. É com técnica e sutileza que ele desvenda em palavras a dor de cabeça das coisas.

Dizia ele que ter lido pela primeira vez o livro “Alguma Poesia”, de Drummond, aos 17 anos, foi o fator responsável por inicia-lo nessa jornada sem fim que é ser poeta. Mas arrisco dizer que um fator anterior foi fundamental pra composição de seu estilo: o instinto meio-campo.

Para os apreciadores do futebol, não é preciso dizer como o esporte respinga poesia, seja pela dança de um drible, pelo traço de um passe, pelo drama da defesa, o choro de frente com a festa, ou por elementos que transcendem o jogo em si.

Dentro dos gramados, é fato que os maiores poetas atuam geralmente na posição de meio-campo. Capazes de dar uma aspirina pra um jogo febril, são eles quem geralmente fazem jogadas que extraem flores do concreto, entortando passos, rabiscando zagas e desenhando esperanças, por mais bruta que uma partida esteja. Nunca me esqueço de uma frase do eterno mestre Telê Santana: “o passe é um gesto de amizade”. É preciso cuidar bem do enlace pra que se termine em gol.

Certamente, o instinto meio-campo continuou a coabitar João Cabral de Melo Neto mesmo após a aposentadoria precoce de sua primeira carreira. Pois pois! Nosso poeta não só era um apreciador do futebol como já foi mesmo jogador, chegando a ser campeão juvenil, aos 16 anos, como meia pelo Santa Cruz, time mais que tradicional de Recife, ainda que seu coração fosse América (coisas do futebol). Graças à sorte, ele não seguiu carreira e pudemos conhecer toda sua produção literária como tal. Imagina só como seria se ele fosse junto o poeta que foi e o jogador que podia ser? Que música será que ele ia pedir no fantástico depois de fazer um hat-trick, hein…

Mas assim como a poesia e assim como a vida, o futebol-arte, literalmente falando, não é apenas sobre a beleza das imagens. É também sobre ritmo, sobre entender percursos, tanto dos corpos, quanto dos dias. Sobre quando o sublime atinge um sofrimento. Ele ensina a conhecer a perda e descobrir a ausência. E, é claro, a apreciar presenças.

Futebol-arte é sobre não olhar relógios mesmo sabendo de nosso limite de tempo.

Cabral, como um bom poeta, sabia de todas essas coisas e as traduziu nos poemas que fez sobre esse esporte, nos dando passes certeiros. “Ademir da Guia”, “A Ademir Menezes”, “O Futebol Brasileiro Evocado da Europa” são alguns deles. Mas eu gostaria de destacar o poema “O Torcedor do América F.C.”, que pode ser o torcedor dos vários Américas que temos pelo Brasil, o torcedor de todos os chamados times pequenos ao longo do mundo todo, que conseguem eternizar suas conquistas na raridade de suas obras (Leicester FC que o diga!).

Nesse mundo em que a vitória significa a desumanização pela submissão às regras do capital, ele nos lembra o barato que é ser um perdedor.

O TORCEDOR DO AMÉRICA F.C

O desábito de vencer

não cria o calo da vitória

não dá à vitória o fio cego

nem lhe cansa as molas nervosas.

Guarda-a sem mofo: coisa fresca,

pele sensível, núbil, nova,

ácida à língua qual cajá,

salto do sol no cais da Aurora.

Fonte: MELO NETO, João Cabral de. Museu de Tudo. Alfaguarda Brasil, 2009 (1ª edição publicada em 1975).


Danilo Malabrito é um amigo do silêncio. Nunca sonha à noite e acorda tarde todo dia. Sua meta é não ter metas, apenas atravessar. Não acredita nos diplomas e gosta mais das coisas que não sabem virar assunto. Daí escreve poemas. Para conhecer mais:

Blog: http://malabrito.blogspot.com.br/

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