Mês: julho 2016

Lima Barreto e as mulheres

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Texto de Maria Karina

“É o fim dos tempos”

Você alguma vez já se perguntou quantos mil anos faz que essa expressão vem sendo usada? Eu acabo sempre pensando se ela vem coberta de ingenuidade ou ignorância. Talvez os dois, talvez nenhum. Tem gente que usa mesmo só para angariar medo.

Ela é bastante usada quando depois de casos de violência, principalmente os mais brutais, como o da jovem estudante indiana que teve as entranhas arrancadas à mão em um estupro coletivo, “porque” saiu à noite com um amigo para ir ao cinema.

Talvez seja isso.

Para as mulheres sempre foi “o fim dos tempos”.

É duro viver no ano de 2016 e ter que ler que uma mulher foi assassinada pelo ex ou atual alguma coisa por simplesmente romper a relação. Mais duro ainda é saber que não é uma, são várias, o tempo todo. A tia agredida, a prima estuprada, a amiga abusada. Você.

“É o fim dos tempos”, eles dizem. Lima Barreto, no entanto, já contou como esse “fim dos tempos” funciona lá em 1915. Isso mesmo, há 101 anos:

Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.

O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha veio a morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.

Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.

Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.

Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão. O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.

Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas

De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como e então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?

Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.

Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação. O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido. Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor. Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.

Deixem as mulheres amar à vontade.

Não as matem, pelo amor de Deus!

Vida urbana, 27-01-1915.

Fonte: BARRETO, Lima. Crônicas escolhidas Lima Barreto. São Paulo. Ática, 1995.


Maria Karina anda por ai querendo se saber, desfazendo Letras, provoc(am)ando gentes e pondo em tudo a vírgula que é pra imitar Clarice – de quem fez mãe sem nunca dela ter levado bronca. Taí uma mentira e vírgula. Para conhecer mais:

Tumblr: http://minhastardescomchaya.tumblr.com

Blog: https://estaesmaria.wordpress.com

Feliz dia dazamiga e dozamigo!

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Texto de Maria Karina

Às vezes a gente deita na cama e fica pensando em como tem sorte de conhecer uma galera incrível. Agradece a todas as entidades divinas, desde os deuses do Olimpo até os pokémons.

Tem também aquele povo que a gente morre de vontade de ser amigo de infância. Sabe aquelas pessoas que você pensa “maaaano, que maravilhosa, quero andar com ela no recreio” e aí sai curtindo todas as fotos, postagens e vira aquela stalker maluca? E quando ela curte ou compartilha alguma postagem sua e você quase cai da cadeira e fica gritando É PENTAAAAAAA  É PENTAAAAAAAA. Então, acontece.

Depois de passada a euforia você fica lá conversando com suas lantejoulas para maneirar um pouco a dose, tentar se comportar senão vai parecer uma psicopata. Pensa nas suas autoras favoritas e conclui “elas nunca seriam minhas amigas”, coloca a mão no coração e começa BATATINHA QUANDO NASCE (parei).

A questão é que você não imagina cada história divertida de escritoras(es) quando gostam de alguém pra ser amigue de infância. Até Clarice Lispector, que sustentava aquele olhar de quem estava só de férias no mundo e por isso mesmo não era obrigada a nada, já deixou a timidez em casa e foi com tudo pra cima da artista Djanira da Motta. Repara nesse trecho de uma entrevista feita pela nossa deusa das palavras e diz se não tá na cara que Clarice seria stalker fácil da Djanira no facebook:

Como não amar Djanira, mesmo sem conhecê-la pessoalmente? Eu já amava o seu trabalho, e quanto – e quanto. Mas quando se abriu a porta e eu a vi – parei e disse:

– Espere um pouco, quero ver você.

E vi – eu vi mesmo – que ela ia ser minha amiga. Ela tem qualquer coisa nos olhos que dá a ideia de que o mistério é simples. Não estranhou o fato de eu ficar olhando para ela, até eu dizer:

– Pronto, agora já conheço você e posso entrar.

Djanira tem a bondade no sorriso e no resto, mas não uma bondade morna. Nem é uma bondade agressiva. Djanira tem em si o que ela dá no seu trabalho. É pouco isso? Nunca, isso é tudo. Isso é a veracidade do ser humano dignificado pela simplicidade profunda que existe em trabalhar.

Sentamo-nos, eu sem tirar os olhos do rosto dela, ela me examinando com bondade, sem me estranhar nem um pouco.

Não se deve escrever Djanira e sim DJANIRA.

– Djanira, você é uma criatura fechada. E eu também. Como vamos fazer? O jeito é falar a verdade. A verdade é mais simples que a mentira.

Ela me olhou profundamente. E eu continuei, com esse tipo de timidez que sempre foi a minha:

– Eu quero saber tudo a seu respeito. E cabe a você selecionar o seu tudo, pois não quero invadir sua alma. Quero saber por que você pinta e quero saber por que as pessoas pintam. Quero saber que é que você faria em matéria de arte se não fosse pintura. Quero saber como é que você foi andando a ponto de se chamar Djanira. E quero a verdade, tanto quanto você possa dar sem ferir-se a si própria. Se você quiser me enganar, me engane, pois não quero que nenhuma pergunta minha faça você sofrer. Se você saber cozinhar, diga, porque tudo o que vier de você eu quero.

– A gente pinta como quem ama, ninguém sabe por que ama, a gente não sabe por que pinta.

Fonte: LISPECTOR, Clarice. Entrevistas. Rio de Janeiro. Rocco, 2007.


Maria Karina anda por ai querendo se saber, desfazendo Letras, provoc(am)ando gentes e pondo em tudo a vírgula que é pra imitar Clarice – de quem fez mãe sem nunca dela ter levado bronca. Taí uma mentira e vírgula. Para conhecer mais:

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Polêmica: Rubem Alves favorável à eutanásia

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Texto de Maria Karina

Apesar de a eutanásia ser uma prática que vem desde a Grécia e Roma antigas, o assunto ainda é um grande tabu. São poucos os países que permitem o procedimento, que se trata, basicamente, do auxílio médico direto para provocar a morte de um paciente em determinado estado de saúde. Existe também o suicídio assistido, nesse caso, a própria pessoa tem facilitado o acesso à droga letal, mas não pode ter ajuda de terceiros na execução. Ambos procedimentos para serem autorizados exigem alguns requisitos importantes, como a lucidez do paciente e a comprovação do grave quadro clinico.

Recentemente o assunto voltou a ser discutido através do filme “Me before you” (Como eu era antes de você, em tradução brasileira), que conta a história de um rapaz que sofre um acidente e fica tetraplégico, o que decai drasticamente a sua qualidade de vida, pois além da perda de quase toda sua capacidade motora, sua imunidade reduz cada vez mais. A história apresenta muitos estereótipos, o rapaz rico, a moça pobre, uma paixão de temporada. A trama, no entanto, centra-se na decisão do rapaz pela eutanásia. Será que ao se apaixonar ele poderá mudar de ideia?

Outro filme que tratou do assunto e foi alvejado de boas críticas, concorreu (e venceu) diversos prêmios, foi Menina de ouro. Nele, conta-se a história de uma lutadora de boxe incrivelmente determinada e talentosa, que tem a medula espinhal lesionada durante uma luta – e assim como no caso do filme mencionado acima, perde praticamente toda sua capacidade motora, precisa lidar com amputação, entre outros problemas. A grande polêmica gerada pelo filme foi justamente a decisão dela de morrer, porque ela nunca mais subiria no ringue. O ringue era a vida dela. Era seu propósito. O fato de seu chefe, como ela o chamava, ter feito isso sem o aval de autoridades atiçou as fogueiras da nossa idade média moderna. Mas ele realizou o pedido dela. A decisão não foi fácil, afinal, ele a amava. Como aceitar esse desejo de morte de alguém que amamos?

E é nesse barulho que surgem as preciosas palavras do multifacetado Rubem Alves, o velhinho eterno jovem que nos deixou há pouco tempo. No livro Desfiz 75 anos, Rubem escreveu um texto intitulado justamente “Eutanásia”, em que se posiciona claramente favorável ao procedimento, por uma questão ética. A ética conceituada por Albert Camus. Aproveitem alguns trechos:

Sempre que se fala em eutanásia seus opositores invocam razões éticas e teológicas. Dizem que a vida é dada por Deus e que, portanto, somente Deus tem o direito de tirá-la. Eutanásia é matar uma pessoa e há um mandamento que proíbe que isso seja feito. Assim, em nome de princípios universais, permite-se que uma pessoa morra em meio ao maior sofrimento.

Pois eu afirmo: sou a favor da eutanásia por motivos éticos. Albert Camus, numa frase bem curta, disse que, se ele fosse escrever um livro sobre ética, 99 páginas estariam em branco e na última página estaria escrito “amor”.

Todos os princípios éticos que possam ser inventados por teólogos e filósofos caem por terra diante dessa pequena palavra: “amar”. Deus é amor.

O amor, segundo os textos sagrados, é fazer aos outros aquilo que desejaríamos que fosse feito conosco, numa situação semelhante.

Amo os cães e já tive dezenas. Muitos deles eu mesmo levei ao veterinário para que lhes fosse dado o alívio para o seu sofrimento. Fiz isso porque os amava, eram meus amigos, queria o bem deles. E eu gostaria que fizessem o mesmo comigo, se estivesse na sua situação de sofrimento.

Defender a vida a todo custo! De acordo. É a filosofia de Albert Schweitzer e a filosofia de Mahatma Gandhi: reverência pela vida. Tudo o que vive é sagrado e deve ser protegido.

Mas o que é a vida? Ouço os bem-te-vis cantando: eles estão louvando a beleza da vida. Vejo as crianças brincando: elas estão gozando as alegrias da vida. Vejo os namorados se beijando: eles estão experimentando os prazeres da vida. Que tudo se faça para que a vida se exprima na exuberância da sua felicidade! Para isso todos devem ser feitos.

Mas eu pergunto: a vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da música. A manga pendente num galho: tão linda, tão vermelha. Mas o tempo chega quando ela quer morrer. A criança brinca o dia inteiro. Chegada a noite, ela está cansada. Ela quer dormir. Que crueldade seria impedir que a criança dormisse quando o seu corpo quer dormir.

A vida não pode ser medida por batidas de coração ou ondas elétricas. Como um instrumento musical, a vida só vale a pena ser vivida enquanto o corpo for capaz de produzir música, ainda que seja a de um simples sorriso.

Fonte: ALVES, Rubem. Desfiz 75 anos. Campinas. Papirus, 2009.


Maria Karina anda por ai querendo se saber, desfazendo Letras, provoc(am)ando gentes e pondo em tudo a vírgula que é pra imitar Clarice – de quem fez mãe sem nunca dela ter levado bronca. Taí uma mentira e vírgula. Para conhecer mais:

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Drummond: A brincadeira como revolução

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Texto de Danilo Lago

Infectados pelo vírus da guerra. A saliva é pólvora, o olhar escopeta. Nos matamos em cada esquina, em cada diálogo sepultado, em discussões que poderiam ser finalizadas com apertos de mão. Mas os revólveres sempre estão engatilhados.

Olho por olho, dente por dente, horizontes amputados. Em meio a tal cenário bélico, abrir um livro é um ato revolucionário. E eu o abri bem numa crônica subversiva, numa guerrilha de palavras, chamada “Vamos brincar”.

Nela, o poeta e escritor Carlos Drummond de Andrade faz apologia de um dos maiores atos revolucionários da vida: Brincar. Nunca se esqueçam, as brincadeiras são perigosas:

E adotemos não somente os jogos com fumaças cerebrais, que estão na moda, mas também a amarelinha, o chicote-queimado, o tempo-será, a gata-parida, ocupações deliciosas que tiram todo o tempo e prazer de guerrear.

Fonte: Andrade, Carlos Drummond de. De notícias e não notícias faz-se a crônica. Rio de Janeiro. Record, 2007.


Danilo Lago é aspirante na teologia e pescador na literatura. Sabe que é mais fácil começar uma briga do que um texto. Para conhecer mais:

Página: https://www.facebook.com/cronicacinzenta/?fref=ts

Drummond: Pelo fim do xingamento animal

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Texto de Danilo Lago

Quem nunca xingou o chato do irmão, o namorado machista, o juiz desatento, com o nome de algum inocente animalzinho, tipo: “Ele é um cachorro sem vergonha”, “você é burro, heim”, “ô, seu jumento”.

É zuado, é decadente, é burrice (ops, foi mal), mas várias vezes roubamos os nomes dos animais para apontarmos as nossas deficiências.
Calma, nem tudo está perdido.

Fazendo justiça aos nomes dos animais, o poeta e escritor Carlos Drummond de Andrade, na crônica “Modos de xingar”, apresenta-se como um grande militante da luta contra a profanação dos nossos irmãos e irmãs animais, se liga só:

Jamais aprovei o uso indevido de nomes de animais para qualificar ou verberar deficiências intelectuais ou morais do próximo. A injustiça feita ao cachorro, alçado “cachorrão”, como sinônimo de mau-caráter, dói e revolta. A zebra não é responsável pelo baixo QI de seres humanos, nem o camelo tampouco. Burro, burróide, besta, bestalhão, jumento: outros exemplos de impropriedade vocabular, que não recomendam a linguagem crítica. Irracionais prestantes, muitas vezes providos de razão prática luminosa, não costumam, que eu saiba, xingar os de sua espécie com invectivas desta ordem:

– Homem!

– Homúnculo!

– Reverendíssimo homem!

Fonte: Andrade, Carlos Drummond de. De notícias e não notícias faz-se a crônica. Rio de Janeiro. Record, 2007. (pág. 92).


Danilo Lago é aspirante na teologia e pescador na literatura. Sabe que é mais fácil começar uma briga do que um texto. Para conhecer mais:

Página: https://www.facebook.com/cronicacinzenta/?fref=ts