Mês: julho 2017

As pétalas abertas da Revolução dos Cravos

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Texto de Maria Karina

Muitas obras criadas a partir de regimes totalitários são como a flor que rompe o asfalto – não a feia como cantou Carlos Drummond de Andrade –, a bela,  corada, valente, sofrida e arrebatadora flor. Assim são Levantado do chão e O Dia dos Prodígios, de José Saramago e Lídia Jorge, respectivamente. Romances não apenas inspirados a partir da Revolução dos Cravos como também deflagradores de outras revoluções. Envolve os leitores nas mais diversas paixões, levando-os do estado de incompreensão ao encantamento, de indignação à esperança.

Chorando as lágrimas de João Mau-Tempo quando cativo do Latifúndio ou as de Maria Adelaide diante da festa dos soldados floridos. Desiludindo-se como Jesuína Palha sem seus heróis ou reagindo como Branca quando regurgita a própria vida antes engolida pelas violências de José Pássaro, nascido “de pés virados”. Todos personagens das obras aqui experimentadas.

Dois escritores que trazem frescor e se rebelam contra o contexto literário da época. Ele reinventa, faz da grandeza parágrafos, traz fluidez e a língua dos lavradores. A pontuação é subversiva, vírgula em vez de pontos finais, porque a paisagem nunca acaba. E letras maiúsculas em vez de travessão, porque a palavra é direito, não permissão. Coroa rei o narrador – que reflete, ironiza, conta o desfecho antes do fim, recua e avança assim do nada. Ela, ainda mais audaciosa, fez um romance bipolar, ora dramático ora lírico. Com uma narrativa polifônica, em que “a voz do povo é a voz de Deus”. O narrador um fiel com pouca autonomia. É preciso tomar cuidado com os desentendimentos, aqui também falta travessão e às vezes parece dia de feira, cabendo ao leitor ser mediador da confusão.

Ele fala de Monte Lavre e arredores, dos tempos maus e dos menos piores; ela nos leva até Vilamaninhos, rural cidade de pacatos cidadãos que só chamam atenção quando a cobra voa e a mula sorri a santa trindade. Ele faz contraposição do tempo em calendário católico. Ela contrapõe mundos, do desconhecido campo ao urbano notório. No chão dele andam muitos sapateiros descalços, mulheres caladas e trabalhadores plantando até o último suor para colher migalhas. No dia dela andam mulheres que gritam, outra que só sonha, umas donas de si e outra que só apanha, vários Josés e os  velhos surdos – sempre sentados.

Levantado do Chão é homem que se revolta ao ver lutar até cair pai e filho anônimos para divertimento dos donos do Latifúndio. São também formigas aos milhares que como cães levantam a cabeça para finalmente narrar suas versões e buscar o mínimo de dor, porque gozo não conhecem. São mais que ondas passageiras, são homens e mulheres que decidiram atravessar o mar e ocupar as colheitas, porque já não suportam que animais domésticos comam mais do que eles. Saem todos juntos, fantasmas e poucas carnes dando ao começo esperança de paisagens mais gentis.

A família Mau-Tempo carrega marcas que só esse sobrenome explica, desde as mudanças aos abandonos frequentes. Do pai Domingo, que tão depressa morreu com a corda no pescoço, ao filho João, que tendo lutado tanto em sobrevida só presenciou morto a revolução. Os exclusivos olhos azuis do avô causam mistérios que só o abuso de uma antepassada esclarece. Esse céu manchado com gritos vermelhos surge na neta, que trazendo as boas novas leva nome da santa do cadáver cheirando a rosa. Prenúncio da Revolução dos Cravos que abriria pétalas para a subversão dos lavradores. Florescida apenas na geração de Maria Adelaide, que trocando Mau-Tempo por Espada e desilusão por luta, tornou-se mulher.

O Dia dos Prodígios conta ao fechado povoado que Dom Sebastião não volta mais, se quiserem é aceitar que cobra salta e mula nessa terra mal tem dentes. Soldados são de carnes e vêm cantar a revolução, não fazem malabares nem trazem multidão. Nada muda sem disposição, falta rei, falta Salazar e não se sabe onde colocar tantos cravos. Foi então Macário aceito por Carminha e Branca feita deusa do tempo, quase liberta quase presa, escolheu não ter amante que a torne realeza.

Do furdunço e do tédio nascem mitos, que exibem mulheres Jesuínas que nascem Palhas e são fáceis de pegar fogo. Do padre que não esconde as vergonhas nasce Carminha que precisa esconder as origens. Da tradição dos homens invejosos e ignorantes nascem mulheres violadas. Do copo de boêmia tocam bandolins aos Mácarios não amados. Faltam flores, mas sobram sinais. Mula e Cobra que juntas conspiram contra o povoado de Vilamaninhos, entre voos e sorrisos. Nos sonhos dos moradores, avisam que a mudança não é milagre, animais livres depois de amarrados e assassinados é que são. Os filhos e noivo que a guerra leva e a morte que traz notícias tornam Esperancinha a mãe, e Parda a quase viúva.

Assim, precisando ser melhor contada, cada obra tem seus olhos. Sabendo cada par pelo que chorar. Tantos anos, nada resolvido. Mas isso só sabia Lídia Jorge que escreveu a obra em tempo maduro, seis primaveras depois da Revolução dos Cravos. Saramago, ainda no fogo que queimou tudo, inclusive ele, pintou de esperança a flor antes sangrada – que furou o coração dos trabalhadores que pelejavam mesmo sem armas. As duas são começo. O futuro a outras obras pertence.

Referências

JORGE, Lídia. O Dia dos Prodígios. Portugal: Dom Quixote, 2010.

SARAMAGO, José. Levantado do Chão. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

SECCO, Lincoln. A revolução dos Cravos. São Paulo: Alameda, 2004.


Maria Karina anda por ai querendo se saber, desfazendo Letras, provoc(am)ando gentes e pondo em tudo a vírgula que é pra imitar Clarice – de quem fez mãe sem nunca dela ter levado bronca. Taí uma mentira e vírgula. Para conhecer mais:

Tumblr: http://minhastardescomchaya.tumblr.com

Blog: https://estaesmaria.wordpress.com